Portaria 11.956/2019 – aspectos controvertidos (parte 2)

Prosseguindo com nossos comentários sobre a nova Portaria 11.956 de 27 de novembro de 2019, que veio regulamentar as modalidades de transação previstas na MP 899/2019 (MP do Contribuinte Legal), passamos a examinar as normas referentes à modalidade de transação individual.

Neste aspecto, a Portaria 11.956 inova ao exigir, como parte integrante da proposta de transação individual, a apresentação pelo contribuinte de “plano de recuperação fiscal” com exigências muito parecidas àquelas contidas no artigo 51 da Lei de Recuperação Judicial e Extrajudicial (Lei 11.101/2005).

O problema é que, a toda evidência, um pedido de transação individual para equacionamento de débitos tributários é conceitualmente diverso de um procedimento de recuperação fiscal (que visa evitar uma futura falência), não sendo razoável exigir-se de contribuinte que pretende regularizar débitos tributários que siga um procedimento em todo semelhante ao de uma recuperação judicial.

De pronto, encontramos algumas exigências excessivas, tais como a obrigação do contribuinte proponente da transação ser obrigado a apresentar plano de recuperação fiscal contendo, entre outras informações, os “extratos atualizados das contas do devedor e de suas eventuais aplicações financeiras de qualquer modalidade, inclusive em fundos de investimento ou em bolsas de valores, no Brasil ou no exterior (…)”, entre outras.

Tal determinação fere o sigilo bancário (art. 5º, X e XII da CF/88 e LC 105/01), não podendo a administração pública, a pretexto de obter informações para decidir sobre a conveniência ou não de transação individual relativa a débitos em dívida ativa, quebrar o sigilo bancário do contribuinte fora das hipóteses legalmente previstas, especialmente na Lei Complementar 105/2001 (valendo observar que a própria MP 899 nada traz a respeito desta suposta obrigação criada pela Portaria 11.956).

Mais grave ainda é a exigência contida no inciso VIII do artigo 36 da Portaria, ao pretender que seja fornecida “relação dos bens particulares dos controladores, administradores, gestores e representantes legais do sujeito passivo (…) inclusive cotas e participações em empresas ou fundos”. 

Ora, o que os bens particulares das pessoas naturais que representem a pessoa jurídica transacionante tem a ver com uma transação firmada entre a pessoa jurídica contribuinte e a administração pública? Não estão presentes nenhuma das hipóteses legais autorizadoras para o fornecimento de tais informações pertencentes a terceiros estranhos à relação jurídica transacional (já que, obviamente, os controladores, administradores, gestores e representantes legais, não se confundem com a pessoa jurídica). 

Também não há que se falar em possível responsabilidade solidária, pois esta não existe em abstrato, somente surgindo diante de evidências concretas de fraude, as quais não emanam de um simples pedido de transação tributária.

Observe-se que esta norma, como já ventilado mais acima, nada mais é do que a repetição literal de exigência similar contida no artigo 51, inciso VI da Lei 11.101/2005 (Lei de Recuperação de Empresas e Falência), aonde a mesma poderia ser tida como legítima por se tratar de hipótese em que a empresa encontra-se em situação que, por sua natureza (recuperação judicial ou falência), poderá resultar em responsabilidade solidária dos administradores.

Mesmo no caso da LREF, a exigência ainda é questionável, conforme lecionam Scalzini, Spinelli e Tellechea: 

“ De acordo como o artigo 51, inc VI da LREF, a petição inicial deverá ser instruída com a relação de bens particulares de sócios controladores e dos administradores do devedor. Todavia, em nosso sentir, trata-se de exigência descabida. (…) A exigência de se revelar o patrimônio dos sócios e administradores faz pairar um ar de desconfiança sobre eles, quase como se houvesse uma presunção de fraude ou confusão patrimonial, o que parece andar em sentido contrário ao princípio segundo o qual a fraude não se presume.”

Ora, mais ainda no caso de empresa em situação regular que simplesmente pretende transacionar créditos tributários conforme autorizado pela lei, a exigência de tal relação de bens particulares é abusiva e, em última análise, ilegal e inconstitucional.

Da mesma forma, nos parece desnecessária a exigência de que o devedor informe a “relação de todas as ações judiciais em que figure como parte, inclusive as de natureza trabalhista, bem como a estimativa dos respectivos valores demandados” (artigo 36, inciso IX, da Portaria 11.956), a qual também é reprodução literal de norma idêntica contida no inciso IX do artigo 51 da Lei de Recuperação Fiscal e Falência. 

Naquele diploma legal, a exigência se justifica diante dos contornos da ação de recuperação judicial, aonde “a relação de ações judiciais tem a função precípua de identificar, desde já, outros créditos sujeitos ao regime recuperatório além daqueles que já são líquidos“. Na hipótese do pedido de transação tributária, tal necessidade inexiste, não fazendo sentido pleitear informações ao contribuinte que não possuem absolutamente nenhuma relação com a transação tributária. 

Não se venha dizer que o objetivo seria apurar a saúde financeira do contribuinte (para fim de auxiliar a PGFN na análise de conveniência de aceitar a proposta de transação), pois esta informação pode ser obtida facilmente por outros meios menos gravosos e invasivos.

A toda evidência, nos parece que, neste aspecto da Portaria, a PGFN simplesmente reproduziu alguns dispositivos extraídos da LREF, referentes ao Plano de Recuperação Judicial (cabível naquela situação, mas incongruente em pedido de transação individual), sem atentar para as fundamentais diferenças das situações de fato: de um lado, empresa em recuperação judicial; do outro, empresa pleiteando uma transação tributária prevista em lei.

Outro ponto questionável é a subjetividade dada à PGFN para definir a situação econômico-fiscal e capacidade de pagamento do devedor, através de normas abertas (em especial, incisos VI, parte inicial, e inciso VII do artigo 37, além da inspeção prevista no artigo 40), resultando em excessiva discricionariedade. Seria aconselhável que o regulamento trouxesse critérios mais objetivos, por exemplo: indicadores econômicos de saúde financeira similares aos aplicáveis a procedimentos licitatórios, tais como Índice de Liquidez Geral (ILG), Índice de Liquidez Corrente (ILC), Índice de Endividamento Total (IET) e índice de Solvência Geral (ISG).

Concluindo nossos comentários sobre a nova Portaria 11.956, trazemos um último aspecto que certamente despertará grande interesse entre contribuintes. Trata-se da previsão para utilização de Precatórios Federais, próprios ou de terceiros, na amortização ou liquidação do saldo devedor transacionado. 

Esta possibilidade de utilização de precatórios na amortização ou liquidação de débitos tributários, já adotada na esfera estadual em algumas experiências bem sucedidas (por exemplo, em algumas anistias no Estado do Rio de Janeiro que autorizavam a utilização de precatórios estaduais fluminenses), possibilitará uma maior adesão e será um incentivo adicional para quitação de débitos tidos como irrecuperáveis, além de reduzir a dívida federal baseada em precatórios, em situação “ganha-ganha” para a Administração Pública e para o Contribuinte. 

Entretanto, a Portaria 11.956 traz uma limitação que poderá dificultar a utilização dos precatórios, e que poderia ser eliminada por via das sugestões a serem apresentadas na Consulta Pública prevista pela Portaria nº 11.959/2019.

Com efeito, o artigo 58, IV, combinado com artigo 59 da Portaria 11.956, vedam a cessão parcial do precatório, determinando a apresentação de certidão atestando que “nos casos de precatórios próprios, não houve cessão de créditos a terceiros e, no caso de precatórios de terceiros, que o devedor é o único beneficiário”. 

Tal limitação nos parece despropositada, já que, além de cessões parciais serem comuns, até mesmo pelo valor envolvido em algumas discussões judiciais que levaram décadas (há casos, por exemplo, de precatório de valor superior a centenas de milhões de reais, com cessões parciais de algumas dezenas de milhões de reais a terceiros), não vislumbramos motivação técnica para impedir que um precatório parcialmente cedido seja utilizado. Esta limitação retirará, do escopo das transações, precatórios substanciais que poderiam aquecer e movimentar as transações tanto nas modalidades por adesão quanto em modalidades individuais. 

Observamos, por fim, que em 4 de dezembro de 2019 foi publicado o Edital 01/2019 pela PGFN considerando a regulamentação da MP 899/2019. Este primeiro balão de ensaio não foi bem recebido pelos contribuintes, por trazer propostas tímidas e pouco atrativas, com exigência de pagamento de entrada de valor substancial (5% a 10% do total do débito), descontos reduzidos para a maioria das situações (por exemplo, descontos de apenas 10% para parcelamentos de 61 a 79 meses) e aplicação do desconto máximo de 50% (ou 70% para pessoas naturais, microempresas e EPP) apenas para pagamento à vista. 

Diante da tibieza da proposta contida neste primeiro edital, a maioria dos especialistas consultados entende que haverá baixa adesão. De qualquer modo, é uma primeira experiência que poderá ser aprimorada no futuro, especialmente após a Consulta Pública prevista para início de 2020, que poderá resultar em edição de nova Portaria que altere ou acresça artigos à Portaria 11.956.

Esperamos, com estas breves anotações, ter contribuído com algumas sugestões práticas visando exatamente o aprimoramento dos instrumentos de transação tributária, iniciativa que merece o apoio de todos os contribuintes.

Compartilhar:

por

Todos os direitos reservados